Kendô no Brasil – panorama da pesquisa e um breve histórico (Parte 2 de 2)
terça-feira, 09 de dezembro de 2008

Na primeira parte deste artigo, foi exposta de maneira sucinta a evolução do kendô no Brasil até a eclosão da Segunda Guerra Mundial. Na segunda e última parte, será apresentado o panorama do kendô no Brasil durante e após a Guerra.

Durante a Guerra, o kendô foi visto pelas autoridades brasileiras como um exercício de combate militar e portanto proibido em sua totalidade. Entretanto, não foram poucas as pessoas que continuaram a treinar, longe dos olhos de possíveis delatores que pudessem comprometer a prática.

Um exemplo é Mitsuo Kimura, que faleceu este ano (2008). Ele treinava à noite, em galpões utilizados para a criação de bichos-da-seda. Na falta de querosene, banha de porco era queimada para gerar luz, e em noites de luar, treinava ao ar livre, juntamente com alguns poucos companheiros de treino.

Em agosto de 1945, a comunidade japonesa do Brasil recebeu a notícia do fim da Guerra, e eclodiu o conflito entre os triunfalistas, que acreditavam na vitória do Japão, e os derrotistas, que reconheciam a derrota do Japão às potências aliadas. Este tema foi tabu durante vários anos, mas, alguns anos atrás, foi publicado com grande êxito o livro “Corações Sujos”, cujo tema principal era a organização Shindô Renmei, símbolo desse conflito. Com isso, esse tema voltou a receber atenção e foi recentemente objeto de muitos estudos e discussões, de forma que este artigo não irá se aprofundar nos detalhes desse conflito.

Obviamente, o kendô no Brasil também se viu envolvido nesse choque entre os triunfalistas e os derrotistas. Provavelmente não são muitos os que sabem deste fato, mas a Shindô Renmei é a sucessora da sociedade secreta Kôdôsha, que agiu durante a guerra. E, dentro das duas organizações, havia muitos membros que eram ativos praticantes de kendô.

Como o kendô é uma arte tradicional japonesa, pode-se ser levado a acreditar que os praticantes eram essencialmente triunfalistas, uma vez que estes eram os que mais defendiam as tradições e os símbolos nipônicos. Entretanto, é fato que muitos mestres de kendô se alinhavam com os derrotistas. Um exemplo é Eiji Kikuchi, o baluarte máximo do kendô no Brasil pré-Segunda Guerra, que chegou a publicar um manifesto em que aceitava a derrota japonesa aos americanos e entrava em choque frontal com os triunfalistas.

Após o fim da Guerra, a região do Alto Tietê foi a primeira a presenciar o efetivo ressurgimento do kendô, com a realização do primeiro campeonato de kendô pós-Guerra, em 11 de fevereiro de 1946. Organizado por Yoshisuke Oura, de Suzano, Takeo Satô e outros, o torneio foi bastante modesto em seu tamanho, mas extremamente importante em seu significado simbólico.

A partir disso, o kendô voltou a ser praticado ativamente em inúmeros locais, em especial no interior. Colônias japonesas como Tietê, atual cidade de Pereira Barreto, contavam com literalmente centenas de praticantes que empunhavam as suas espadas e treinavam diligentemente.

Com o aumento no número de praticantes, iniciou-se naturalmente o processo de formação de associações de kendô. A primeira associação a surgir foi a Hakkoku Chûô-sen Jûkendô Renmei (“Associação Brasileira de Judô e Kendô da Linha Central do Brasil”), que organizou seu primeiro torneio já em 1947. No seu período áureo, ela contava com mais de dez filiais, mas por fim foi extinta na década de 70.

Após a criação do Zenpaku Seinen Renmei, a Associação Brasileira de Moços, que agremiava os jovens da colônia, foi realizado sob sua égide o primeiro Campeonato Brasileiro de Judô e Kendô no ginásio do Pacaembu, em 1950. Por outro lado, no ano seguinte, foi realizado também o primeiro Campeonato Brasileiro de Judô e Kendô, também no ginásio do Pacaembu, sob a Bandeira Adhemar de Barros Nipo Brasileira (Nippaku Sangyô Shinkôkai). Com isso, aconteceu um fato bastante inusitado e pitoresco: a realização de dois campeonatos brasileiros de judô e kendô em um mesmo ano, situação essa que se perdurou durante alguns anos.

Para acabar com essa situação incômoda, a partir do Quarto Centenário da fundação da cidade de São Paulo, em 1954, inúmeras pessoas passaram a trabalhar em prol da criação de uma entidade que reunisse todos os praticantes de kendô. Dentre tais pessoas, havia obviamente os indivíduos que se dedicavam à arte desde antes da Guerra, mas também havia homens que vieram nas correntes imigratórias pós-Guerra.

Dentre estes últimos, pode-se constatar nomes como Matao Taniguchi, aviador japonês durante a Segunda Guerra, veterano da famosa batalha do Golfo de Leyte e fundador da Associação de Kendô Fukuhaku, e Terukuni Eikawa, combatente do Exército Imperial do Japão durante a mesma guerra.

Ao mesmo tempo, manteve-se intensas negociações com o Japão. Em 1951, Tai Morishita (posteriormente, seria um dos diretores vitalícios da Federação Japonesa de Kendô) veio ao Brasil. E, de 1952 a 1953, Minoru Nakahara permaneceu no Brasil para ensinar kendô. Nakahara detinha o 9º dan e tinha o título de Tasshi - o equivalente para Kyôshi em termos atuais. Sua influência no kendô do Brasil foi imensa e sua presença causou uma febre do kendô em diversas regiões, permitindo a formação e o aperfeiçoamento de diversos espadachins.

Os esforços dos amantes do kendô renderam frutos, e em 1959 foi fundada a Zen Hakkoku Kendô Renmei, associação que passou a responder pelo kendô no Brasil. Foi a primeira associação fora da Terra do Sol Nascente a se filiar à Federação de Kendô do Japão.

Essa ligação permaneceu bastante forte. Em 1962, foram outorgados os primeiros títulos para os espadachins brasileiros. Foram conferidos o título de Kyôshi para Eiji Kikuchi, Senji Sugino e Miyojirô Andô e o título de Renshi para Frederico Hiroo Fujiwara. No ano seguinte, veio a primeira delegação de kendô do Japão, liderada por Yûji Ôasa, 10º dan Hanshi, impulsionando de maneira significativa a arte no Brasil.

Em 1967, foi realizado o 3º Campeonato Internacional de Confraternização de Kendô no Japão. Representando o Brasil, foram Senji Sugino e Akinori Kojima. E, três anos depois, foi realizado o 1º Campeonato Mundial de Kendô, no Budokan de Tóquio. O Brasil enviou uma delegação com os seus melhores atletas, obtendo a terceira colocação por equipes.

A maioria da delegação era composta por pessoas que ensinavam ativamente a arte no Brasil, como Tomitoshi Toita, fundador do Seibukan; Yoshikata Kiyohara, fundador do Kôbukan; Mitsuo Kimura, fundador do Shinbukan; Satoshi Nagahashi, de Bastos; Kôshô Higashi, Ichirô Ôrui, Frederico Hiroo Fujiwara e Isao Murakami, de São Paulo.

No início da década de 1980, foi fundada a Federação Paulista de Kendô (FPK). Esse foi o primeiro passo visando a criação de uma entidade nacional de kendô que fosse reconhecida oficialmente pelo Governo brasileiro e, por conseguinte, pode ser considerado como o sucessor do Zen Hakkoku Kendô Renmei. O 5º Campeonato Mundial de Kendô, realizado em São Paulo em 1982, foi organizado pela FPK.

Ao mesmo tempo, a Universidade Kokushikan do Japão abriu filiais no Brasil, enviando espadachins de altíssimo nível para residir durante um longo prazo no país e ensinar a arte. Isso permitiu a formação de inúmeros espadachins brasileiros de renome. Como resultado, no Campeonato Mundial de 1982, o Brasil obteve um notável segundo lugar, sendo que na final, o atleta Eiji Sugino do Brasil chegou a derrotar o seu adversário japonês.

Em 1998, finalmente foi fundada a Confederação Brasileira de Kendô (CBK), devidamente reconhecida pelo Governo brasileiro, e em 2002 foi fundada a Confederação Sul-Americana de Kendô, na qual o Brasil desempenha um papel absolutamente fundamental. Com isso, pode-se dizer que estabeleceram-se bases sólidas em termos organizacionais no que tange ao kendô no Brasil.

Entretanto, o fim da estreita cooperação japonesa devido ao estouro da bolha imobiliária, bem como o fenômeno dekassegui, que levou muitos espadachins a trabalharem como operários no Japão, causaram a justa impressão de que o kendô no Brasil sofreu uma ligeira queda, tanto em termos quantitativos quanto em termos qualitativos.

Assim, os desafios atuais podem ser resumidos essencialmente em: como promover o desenvolvimento técnico, mental e espiritual dos praticantes brasileiros, e como divulgar, difundir e expandir no Brasil uma arte tradicional japonesa como o kendô.

Este artigo conclui-se aqui. Indubitavelmente, há inúmeros pontos que podem ser melhor explorados, e o autor ficaria muito satisfeito se opiniões e críticas construtivas fossem feitas para enriquecer o seu teor. Por fim, o autor gostaria de manifestar o seu mais sincero agradecimento ao senhor Sasaki e ao Centro de Estudos Nipo-Brasileiros pela oportunidade de publicar este trabalho.

Sobre o autor:

Luiz Kobayashi

Neto de japoneses, é Doutor em Engenharia pela Universidade de São Paulo. Atualmente, pesquisa a história do kendô no Brasil.